sábado, 25 de setembro de 2021

A liberdade do meu filho

Quando meu filho nasceu, do silêncio do útero à incandescência da luz foi um mergulho rápido, quase feliz, e nas mãos que o apararam ele deve ter sentido um gosto incógnito de liberdade. Então o trouxeram ao meu peito, cuja auréola ele soube logo encaixar à boca, e sorveu meu leite sem horas marcadas, por anos marcados, esquecido de qualquer outro gosto que lhe tenha adoçado os sentidos. Cresceu atado aos meus braços, que em cada chamado seu se apresentavam firmes e heroicos, e ele teve medo que livre deles fosse devorado pelos dragões da maldade. 

Ainda bem jovem, meu filho conheceu o desejo de ser livre, de alcançar os picos da terra, de alçar voos maiores que as asas, aventurou-se em amores sem amarras, despertou todos os pássaros que trazia no peito. Mas sempre que os pássaros tiveram fome, ele voltou pelo pão e pelo afeto. 

Quando meu filho se tornou um homem, proclamou que nenhum pão e nenhum afeto o privariam do sonho de liberdade. Deixou pátria, deixou família, exilou-se dos amigos da vida inteira, retirou-se por caminhos desconhecidos, na companhia única de seu próprio coração. Por muito tempo viveu o que quis e como quis, conquistou, desbravou, amou, desamou, foi feliz, infeliz e chegou a criar as suas próprias leis. Até o tempo em que não pode mais suportar as satisfações que devia a Deus.

Quando meu filho retornou, não foi necessário que me dissesse que finalmente compreendeu a essência da liberdade. 

 

quinta-feira, 28 de maio de 2020

Pássaros para Leminski

          A lembrança é remota, como de algo que se vive em sonho, envolto em névoa. Eu atravessava o Largo da Ordem numa tarde em que os canteiros da Praça do Relógio explodiam em flores de primavera em pleno verão de Curitiba. Foi então que o anjo, que andava calado ao meu lado, disse-me ao ouvido: Olha o Poeta! Eu olhei, e vi que daquela vez não era uma promessa vã do anjo que costumava caminhar com a mão entrelaçada à minha sob as árvores, e que naquela tarde particular dissera que em breve poderia me levar à presença das estrelas. 
          O Poeta estava ali, ao alcance de minha crença pueril de que a poesia podia ser vista a olho nu. Era Leminski. Com a elegância de "um homem com uma dor", ganhava o tempo de toda uma tarde comovendo-se com os pequenos pássaros feitos de papel branco que os colegiais brincavam de libertar sobre os gramados. Estava ali, recolhendo versos que nasciam com a mesma delicadeza daqueles pássaros efêmeros que voejavam como se fossem perenes entre os jardins da Praça e a juventude dos colegiais. E parecendo nos "olhar de dentro de um diamante", sorriu ao nos ver passar como passavam os pássaros de papel impelidos pelo vento, ou porque tivéssemos nos olhos o encantamento de quem testemunhasse uma aparição divina. Leminski..., sussurrei de volta para o anjo, naquele instante que se imprimiria na memória como uma das mais belas pérolas do nosso relicário. Depois apenas o vimos ir embora, telúrico e quase marginal, caminhando "assim de lado", levado pelo crepúsculo, com um pássaro de papel colhido na concha da mão. 

Crônica publicada no livro Pérolas ao Sol, Escrituras Editora - 2017.

terça-feira, 4 de junho de 2019

Meu nome é Lulih!

    Quando nasci, nem anjo torto nem querubim, meus pais me disseram: "Vai, vai ser Cleude Salete na vida". E eu nem merecia. Ainda não mereço me chamar Cleude. É um nome que nunca me coube, e talvez por isso, quando era ainda um bebê, meus irmãos me chamaram de Luli. Hoje, eles não recordam de onde tiraram a alcunha, mas lembram que logo, logo, todo mundo esqueceu que eu me chamava Cleude, e pelo tempo que se passou até hoje, sempre me tratou por Luli. Depois, por razões que dizem respeito à numerologia, incluí um h. Rojanski eu herdei de meus avós paternos, e assim fiquei Lulih Rojanski, o nome com o qual assino meus textos e meus livros. Este nome, sim, eu habito. E ele habita em mim. 

segunda-feira, 18 de março de 2019

Às suicidas, com amor!


Um gato do avesso no canto do sofá testemunha, com um olho só, o curioso voo de Ana Cristina Cesar do oitavo andar.

Do lado de fora de uma janela de vidros, um gato, impávido, testemunha o último suspiro de Sylvia Plath diante da válvula de gás.

Um gato que ressonava sob uma árvore no campo ouviu o revolver das águas que engoliram o corpo esquálido e vestido de pedras de Virginia Woolf.

O frasco de barbitúricos que adormeceram para sempre Florbela Espanca despencou do criado mudo, despertando o gato do longo sono da tarde.

Da varanda da antiga casa de praia, o gato sonolento foi o único que viu Alfonsina Storni caminhando para as altas águas do mar para nunca mais voltar.

domingo, 17 de março de 2019

Minha cidade é minha?


Minha cidade não é minha cidade. Nasci tão longe que nem se pode calcular a distância de minha cidade até minha cidade. Minha cidade hoje é a que escolhi para viver, e não a que meu viu partindo a casca do ovo, partindo pinhões com os dentes de leite, partindo os porta-retratos do primeiro amor, partindo para sempre para minha cidade derradeira. Esta que agora me vê de coração partido. Minha cidade – se é que o leitor entende que me refiro a cidade Agora – tem tudo o que há nas outras. Tem ruas, que são largas porque havia território suficiente para criar vias generosas, mas por elas, andamos chacoalhando como se andássemos em carroças puxadas por bois, embora tenhamos carros de luxo. Nossos carros, de luxo ou populares, andam velozes por debaixo dos postes sem luz, driblam crateras que se abrem a cada inverno sobre o asfalto eternamente remendado, atropelando gatos distraídos, mutilando filhotes de cachorros que são jogados nas ruas, porque em casa quase ninguém os quer, e não há serviço público que também os queira.

Minha cidade se orgulha de seu endereço: esquina do rio Amazonas com a linha do Equador. Mas o rio Amazonas tem águas tão vigorosas que trazem vacas mortas para a praia, trazem geladeiras descartadas pelo morador das ilhas, trazem panelas velhas, destroços de pneus, de ventiladores, de camas tubulares... Tenho orgulho desse rio, que cumpre com lealdade seu destino de vazar e encher, vazar e encher, todos os dias, há milênios. Mas tenho vergonha de que as quinquilharias sejam levadas de volta pela maré, porque não há quem as recolha. Por certo, quem tem o dever de recolhê-las pensa que os peixes cumprirão a sábia responsabilidade de comer tudo. Desconfio que o rio, sufocado de mágoa, tenha começado a devorar minha cidade. Quem anda, como eu, perscrutando paisagens por todo canto, já deve ter visto os pedaços que ele comeu, engolindo calçadas, arrimos e árvores nos bairros periféricos onde antes ele acolhia os banhistas alegres e bêbados do domingo.

Minha cidade tem um imenso forte que a protege de possíveis invasores, com direito a masmorras e canhões. É o maior e um dos mais belos do Brasil, e ao seu redor, passeiam hordas de visitantes que vão espalhando cargas de copos e garrafas descartáveis de toda cor, pacotes de comida barata vendida pelos ambulantes, latas de refrigerante e cerveja, destroços do piquenique sobre o mato crescido onde deveria haver um gramado verdejante, onde deveria haver, no mínimo, latas de lixo e bancos para descanso e contemplação da paisagem. 

Minha cidade não tem tantas lixeiras públicas quanto poderia. Quando elas se abarrotam, há sempre os que não se envergonham de lançar ao chão os resíduos de tudo aquilo que consomem. E o urubus fazem festa, das oito da manhã até às cinco da tarde, em pleno centro da minha cidade, em pleno parque construído sob a promessa de encantar turistas.

Pelos parques maltratados caminham franceses, alemães, italianos, todos de rosto ardido pelo nosso sol equatorial, com mochilas tão grandes que parecem transportar crocodilos. Mas todos têm nos olhos a mesma desilusão. Afinal, a propaganda era clara: a única capital brasileira banhada pelo maior rio do mundo, área de livre comércio, paisagem amazônica intocada e cultura efervescente. Cést la vie, meus amigos estrangeiros. Faz muito tempo que o abandono ronda o trapiche, o centro de cultura negra, o teatro, os museus, a biblioteca, as praças, as ruas, os monumentos históricos...

Hoje passeei por uma rua distante e descobri que há um circo instalado em minha cidade. Um pequeno e nostálgico circo que me proporcionou a cândida esperança de um recomeço.  Eu não teria medo de derrubar tudo e começar tudo de novo. Ou voltar para a pequena e distante cidade onde nasci, que de qualquer modo, sempre será minha cidade também.

Eu literarizo, tu literarizas...




Sem meias palavras: eu não quero nem saber do dia da poesia, do dia do poeta, do escritor, do dia do raio que o parta. Dia disso ou daquilo nada me dizem. Eu vivo a literatura com tudo o que ela arrasta consigo: poesia e prosa carregadas de amor, de sangue, de guerras, de magia, de tesão, de feitiços, de realidade, de ilusão, de invenção... e vivo de um modo que já não posso dizer que da literatura minha vida possa vir a ser dissociável. São e sempre serão uma coisa só. “Escrevo para poder criar um mundo no qual eu possa viver”* e leio para ter a possibilidade de viver em outros mundos já criados. Portanto, não me perguntem onde estou ou porque sumi. Estou aí em algum livro.  Ou escrevendo qualquer coisa que nem sempre se aproveita. Ainda agora, antes de principiar este modesto escrito, estava a assistir ao último voo de um flamingo, debruçada no derradeiro barranco de um país engolido pela ambição de outrem, segundo Mia Couto. Daqui a pouco estarei perdida nos labirintos de Clarice, de Calvino, de Garcia Márquez, ainda que varra a casa, que lave a louça, que dobre a roupa, que prepare café... Não é possível me encontrar em outro lugar. Sinto muito se você precisa de mim para algo, se requer minha presença, se acredita que realmente estou presente quando estou lá. Não me convide, pois não irei. Se eu for, estarei lhe enganando. Meus gatos são testemunhas, pois, no fim das contas, estão sempre comigo, onde quer que eu esteja de alma. De corpo, não garanto a presença dos gatos.

Faz tempo que desisti de investigar quem está doente: eu, que tento criar um mundo aceitável ou quem aceita o mundo real do modo como está. Há anos acredito que estamos todos doentes. Sofremos de dominação crônica. Cada um é dominado por algo alheio ao que desejou quando projetou a vida ideal: pessoas, lembranças, bens materiais... e bem poucos conhecem o carreiro estreito que leva ao fim do mundo da dominação. De todas as coisas que possam vir a dominar alguém, as lembranças são as mais cruéis. O carreiro jamais será estreito e curto até a consciência de que tudo o que passou não existe mais, porque o próprio tempo inexiste. Descrito assim, deste simplório modo, parece tola a teoria. Só Eckhart Tolle poderá explicar sem parecer tolo.

De minha parte, encontrei o carreiro que proscreve as más lembranças. Mas não posso dizer que estou livre de um domínio. Desde o início tenho dito que crio um mundo para poder existir. Sou dominada pela criação, a ponto de dar a algumas línguas adestradas a oportunidade de dizer que literarizo minha vida. Pouco me importa também.  Não reclamo pelo domínio da literatura. Au contraire... Sou apaixonada pelo coronel Aureliano Buendia, e não se passa um dia em minha vida em que eu não lhe dedique um fundo suspiro.  Ando por sua casa em Macondo, assim como percorro carreiros poeirentos e terras sonâmbulas em Moçambique, onde Mia Couto esconde seres estranhos e onde minha noite habita. Vivo apequenada pela tristeza das vidas de Saramago e engrandecida por transformar meu namorado em príncipe todas as vezes em que o beijo. Não posso explicar isto de um modo engenhoso: minha vida e a literatura são a mesma coisa. 

Estão aí os poetas explodindo o peito a céu aberto em pleno dia da poesia, experimentando chapéus anacrônicos de escritores do passado, chamando Pessoa para uma mesa de bar, enfiando um punhal de gelo no peito de Maiakovski, berrando que existem... Não condeno ninguém. Estou berrando também. No fundo, ou nem tão ao fundo, são todos tão enredados nas teias invencíveis da literatura quanto eu... Sofrem da mesma desordem. Quem vai saber?

*Anayde Beiriz

sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

Ninguém lê!

O que você está lendo? Qual foi o último livro que leu? Onde está o último livro que comprou? Quando o comprou? Onde está o último livro de cujo lançamento participou? Na estante, intacto, ignorado? Eu sinto muito por tudo isso. Honestamente, sinto muito, porque conheço as verdadeiras respostas a estas perguntas, por mais que nas redes sociais a maioria prefira dizer orgulhosa que está atolada em leituras, que tem dormido com Honoré de Balzac debaixo do travesseiro, que gastou em livros boa parte do décimo terceiro salário, que não vive sem Fernando Pessoa... Livros estão ficando no tempo do era uma vez. Editoras estão fechando as portas. Editores estão negociando selos com distribuidoras de literatura vendável e meia-boca. Escritores estão morrendo de desilusão com a cara enfiada na poeira de velhos livros, em arcaicas bibliotecas.

O grande leitor está morrendo. Ele sabe que só é importante para uma geração que está se extinguindo, vagando espaço para os grandes leitores de palavras abreviadas e emoticons sorridentes. Poesia é uma coisa de que o grande leitor de agora ouviu falar mas não sabe exatamente o que significa, como funciona, em que botão se aperta. Conto e crônica são coisas que um professor mencionou, mas ele não se lembra se foi na aula de geografia ou no último filme que baixou no computador. Ele pensa que romance é apenas uma anacrônica história de amor, mais desusada que um rádio de pilhas.

Estou contrariada. Não pertenço a este tempo em que redes sociais influenciam mentes mais do que os livros...

Eu não me preocupo com quem vai se ofender com o que digo. Os ofendidos estão de carapuça. Os que não estão compartilham da minha dor.

quarta-feira, 21 de novembro de 2018

O que é de quem?


Uma postagem recente do poeta e compositor Ademir Pedrosa no Facebook me instigou a publicar este breve texto. Ademir diz o seguinte:

Há uma carrada de textos na internet atribuída a Luís Fernando Veríssimo que não é dele. Há um artigo horroroso (do ponto de vista analítico) contra o Big Brother que ele já declarou que não é dele. Aliás, esse artigo fez muitos intelectuais de araque acreditarem que o BBB é uma bosta porque Veríssimo sentenciou. Pra quem não sabe distinguir alho de bugalho, aí vai uma dica: ‘Há uma maneira de detectar se o texto é falso ou não: se o Luís da assinatura for com Z, o texto não é meu. Se for contra o Bolsonaro, é’."

Uns pares de anos atrás circulou pela internet uma carta de despedida atribuída ao escritor Gabriel García Márquez - segundo a carta, à beira da morte. Eu fui uma entre os leitores que se desmancharam em lágrimas, mesmo sem ter lido a carta, pois conhecia que o escritor estava em tratamento de um cancro linfático. Os leitores mais atentos duvidaram que García Márquez tivesse escrito um texto tão sentimental. E não estavam errados. A carta foi escrita por um ventríloquo mexicano para um espetáculo chamado La Marioneta.

Quem jogou na internet o (péssimo) texto sob a culpa de García Márquez só Deus sabe. É o que em inglês se conhece por hoax. Um embuste, ao pé da letra. Para encerrar a conversa em que lamentou a repercussão da carta, o escritor disse: "Mais valia morrer com um cancro linfático do que ter escrito uma carta de despedida daquelas". Genial!

Outro exemplo de hoax é um texto que circula há anos pela internet como se fosse de Maiakovski. O poema é do brasileiro Eduardo Alves da Costa, chama-se No Caminho com Maiakovski, e este sim, é tão belo que deve ter feito Maiakovski suspirar no túmulo...

Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.

Saudades de Maiakovski

Gostaria que Vladimir Maiakovski tivesse chegado pelo menos aos 50 anos. Que tivesse atravessado os 50 em vez de se fazer atravessar por uma bala aos 36. O poeta operário foi devorado pela revolução russa de Stalin. Uma tristeza e um paradoxo. Ele próprio condenava o suicídio em seus escritos: “A pessoa que deixa voluntariamente a vida leva consigo o mistério de sua decisão. Nenhuma explicação penetra na essência real da atitude tomada. Elas somente entreabrem a cortina sobre o segredo, mas o próprio segredo permanece escondido atrás do final triste da vida”.

Assim como gostaria de percorrer a web e encontrar textos de protesto sobre a atual sem-vergonhice política brasileira, gostaria de ler um poema que Maiakovski tivesse escrito aos 50, depois de ter testemunhado por inteiro o regime sanguinário de Stalin. Hoje ninguém mais escreve o testemunho de nada, muito menos em forma de poema.

O poeta da revolução poderia também ter vivido para envenenar o cretino do Stalin, que viveu até os 73 anos e teve tempo para promover o genocídio de pelo menos 20 milhões. Maiakovski desperdiçou um tempo precioso que poderia ter sido vivido para combater, até o dia em que conseguissem pegá-lo, assim como a Trotsky e a muitos outros. E se não o pegassem, faria, em forma de versos, estragos capazes de fazer Stalin morder o próprio calcanhar. 

Gostaria de conhecer o pensamento de Maiakovski aos 50. Pois se hoje é considerado um dos maiores poetas do século 20 e ainda influencia poetas do mundo inteiro, imagine se tivesse vivido pelo menos mais duas décadas. Mas... seria possível Maiakovski se superar? O segredo permanece escondido atrás do final triste de sua vida. Matou-se, talvez, por impotência diante da realidade dos seus dias, e nós, que estamos aqui olhando a vida pelo retrovisor alheio e reclamando do que os outros deixam de escrever, temos direito a pensar o que? De minha parte, ouso  passar a limpo o que disse de início: penso que, por tudo o que disse e fez enquanto poeta, Maiakovski já nasceu com 50