Minha cidade não é minha
cidade. Nasci tão longe que nem se pode calcular a distância de minha cidade
até minha cidade. Minha cidade hoje é a que escolhi para viver, e não a que meu
viu partindo a casca do ovo, partindo pinhões com os dentes de leite, partindo os
porta-retratos do primeiro amor, partindo para sempre para minha cidade
derradeira. Esta que agora me vê de coração partido. Minha cidade – se é que o
leitor entende que me refiro a cidade Agora – tem tudo o que há nas outras. Tem
ruas, que são largas porque havia território suficiente para criar vias
generosas, mas por elas, andamos chacoalhando como se andássemos em carroças
puxadas por bois, embora tenhamos carros de luxo. Nossos carros, de luxo ou
populares, andam velozes por debaixo dos postes sem luz, driblam crateras que
se abrem a cada inverno sobre o asfalto eternamente remendado, atropelando
gatos distraídos, mutilando filhotes de cachorros que são jogados nas ruas,
porque em casa quase ninguém os quer, e não há serviço público que também os
queira.
Minha cidade se orgulha de
seu endereço: esquina do rio Amazonas com a linha do Equador. Mas o rio
Amazonas tem águas tão vigorosas que trazem vacas mortas para a praia, trazem
geladeiras descartadas pelo morador das ilhas, trazem panelas velhas, destroços
de pneus, de ventiladores, de camas tubulares... Tenho orgulho desse rio, que
cumpre com lealdade seu destino de vazar e encher, vazar e encher, todos os
dias, há milênios. Mas tenho vergonha de que as quinquilharias sejam levadas de
volta pela maré, porque não há quem as recolha. Por certo, quem tem o dever de
recolhê-las pensa que os peixes cumprirão a sábia responsabilidade de comer
tudo. Desconfio que o rio, sufocado de mágoa, tenha começado a devorar minha
cidade. Quem anda, como eu, perscrutando paisagens por todo canto, já deve ter
visto os pedaços que ele comeu, engolindo calçadas, arrimos e árvores nos
bairros periféricos onde antes ele acolhia os banhistas alegres e bêbados do
domingo.
Minha cidade tem um imenso
forte que a protege de possíveis invasores, com direito a masmorras e canhões.
É o maior e um dos mais belos do Brasil, e ao seu redor, passeiam hordas de
visitantes que vão espalhando cargas de copos e garrafas descartáveis de toda
cor, pacotes de comida barata vendida pelos ambulantes, latas de refrigerante e
cerveja, destroços do piquenique sobre o mato crescido onde deveria haver um
gramado verdejante, onde deveria haver, no mínimo, latas de lixo e bancos para
descanso e contemplação da paisagem.
Minha cidade não tem tantas
lixeiras públicas quanto poderia. Quando elas se abarrotam, há sempre os que
não se envergonham de lançar ao chão os resíduos de tudo aquilo que consomem. E
o urubus fazem festa, das oito da manhã até às cinco da tarde, em pleno centro
da minha cidade, em pleno parque construído sob a promessa de encantar
turistas.
Pelos parques maltratados
caminham franceses, alemães, italianos, todos de rosto ardido pelo nosso sol
equatorial, com mochilas tão grandes que parecem transportar crocodilos. Mas todos
têm nos olhos a mesma desilusão. Afinal, a propaganda era clara: a única
capital brasileira banhada pelo maior rio do mundo, área de livre comércio,
paisagem amazônica intocada e cultura efervescente. Cést la vie, meus amigos estrangeiros. Faz muito tempo que o
abandono ronda o trapiche, o centro de cultura negra, o teatro, os museus, a
biblioteca, as praças, as ruas, os monumentos históricos...
Hoje passeei por uma rua
distante e descobri que há um circo instalado em minha cidade. Um pequeno e
nostálgico circo que me proporcionou a cândida esperança de um recomeço. Eu não teria medo de derrubar tudo e começar
tudo de novo. Ou voltar para a pequena e distante cidade onde nasci, que de
qualquer modo, sempre será minha cidade também.