segunda-feira, 18 de março de 2019

Às suicidas, com amor!


Um gato do avesso no canto do sofá testemunha, com um olho só, o curioso voo de Ana Cristina Cesar do oitavo andar.

Do lado de fora de uma janela de vidros, um gato, impávido, testemunha o último suspiro de Sylvia Plath diante da válvula de gás.

Um gato que ressonava sob uma árvore no campo ouviu o revolver das águas que engoliram o corpo esquálido e vestido de pedras de Virginia Woolf.

O frasco de barbitúricos que adormeceram para sempre Florbela Espanca despencou do criado mudo, despertando o gato do longo sono da tarde.

Da varanda da antiga casa de praia, o gato sonolento foi o único que viu Alfonsina Storni caminhando para as altas águas do mar para nunca mais voltar.

domingo, 17 de março de 2019

Minha cidade é minha?


Minha cidade não é minha cidade. Nasci tão longe que nem se pode calcular a distância de minha cidade até minha cidade. Minha cidade hoje é a que escolhi para viver, e não a que meu viu partindo a casca do ovo, partindo pinhões com os dentes de leite, partindo os porta-retratos do primeiro amor, partindo para sempre para minha cidade derradeira. Esta que agora me vê de coração partido. Minha cidade – se é que o leitor entende que me refiro a cidade Agora – tem tudo o que há nas outras. Tem ruas, que são largas porque havia território suficiente para criar vias generosas, mas por elas, andamos chacoalhando como se andássemos em carroças puxadas por bois, embora tenhamos carros de luxo. Nossos carros, de luxo ou populares, andam velozes por debaixo dos postes sem luz, driblam crateras que se abrem a cada inverno sobre o asfalto eternamente remendado, atropelando gatos distraídos, mutilando filhotes de cachorros que são jogados nas ruas, porque em casa quase ninguém os quer, e não há serviço público que também os queira.

Minha cidade se orgulha de seu endereço: esquina do rio Amazonas com a linha do Equador. Mas o rio Amazonas tem águas tão vigorosas que trazem vacas mortas para a praia, trazem geladeiras descartadas pelo morador das ilhas, trazem panelas velhas, destroços de pneus, de ventiladores, de camas tubulares... Tenho orgulho desse rio, que cumpre com lealdade seu destino de vazar e encher, vazar e encher, todos os dias, há milênios. Mas tenho vergonha de que as quinquilharias sejam levadas de volta pela maré, porque não há quem as recolha. Por certo, quem tem o dever de recolhê-las pensa que os peixes cumprirão a sábia responsabilidade de comer tudo. Desconfio que o rio, sufocado de mágoa, tenha começado a devorar minha cidade. Quem anda, como eu, perscrutando paisagens por todo canto, já deve ter visto os pedaços que ele comeu, engolindo calçadas, arrimos e árvores nos bairros periféricos onde antes ele acolhia os banhistas alegres e bêbados do domingo.

Minha cidade tem um imenso forte que a protege de possíveis invasores, com direito a masmorras e canhões. É o maior e um dos mais belos do Brasil, e ao seu redor, passeiam hordas de visitantes que vão espalhando cargas de copos e garrafas descartáveis de toda cor, pacotes de comida barata vendida pelos ambulantes, latas de refrigerante e cerveja, destroços do piquenique sobre o mato crescido onde deveria haver um gramado verdejante, onde deveria haver, no mínimo, latas de lixo e bancos para descanso e contemplação da paisagem. 

Minha cidade não tem tantas lixeiras públicas quanto poderia. Quando elas se abarrotam, há sempre os que não se envergonham de lançar ao chão os resíduos de tudo aquilo que consomem. E o urubus fazem festa, das oito da manhã até às cinco da tarde, em pleno centro da minha cidade, em pleno parque construído sob a promessa de encantar turistas.

Pelos parques maltratados caminham franceses, alemães, italianos, todos de rosto ardido pelo nosso sol equatorial, com mochilas tão grandes que parecem transportar crocodilos. Mas todos têm nos olhos a mesma desilusão. Afinal, a propaganda era clara: a única capital brasileira banhada pelo maior rio do mundo, área de livre comércio, paisagem amazônica intocada e cultura efervescente. Cést la vie, meus amigos estrangeiros. Faz muito tempo que o abandono ronda o trapiche, o centro de cultura negra, o teatro, os museus, a biblioteca, as praças, as ruas, os monumentos históricos...

Hoje passeei por uma rua distante e descobri que há um circo instalado em minha cidade. Um pequeno e nostálgico circo que me proporcionou a cândida esperança de um recomeço.  Eu não teria medo de derrubar tudo e começar tudo de novo. Ou voltar para a pequena e distante cidade onde nasci, que de qualquer modo, sempre será minha cidade também.

Eu literarizo, tu literarizas...




Sem meias palavras: eu não quero nem saber do dia da poesia, do dia do poeta, do escritor, do dia do raio que o parta. Dia disso ou daquilo nada me dizem. Eu vivo a literatura com tudo o que ela arrasta consigo: poesia e prosa carregadas de amor, de sangue, de guerras, de magia, de tesão, de feitiços, de realidade, de ilusão, de invenção... e vivo de um modo que já não posso dizer que da literatura minha vida possa vir a ser dissociável. São e sempre serão uma coisa só. “Escrevo para poder criar um mundo no qual eu possa viver”* e leio para ter a possibilidade de viver em outros mundos já criados. Portanto, não me perguntem onde estou ou porque sumi. Estou aí em algum livro.  Ou escrevendo qualquer coisa que nem sempre se aproveita. Ainda agora, antes de principiar este modesto escrito, estava a assistir ao último voo de um flamingo, debruçada no derradeiro barranco de um país engolido pela ambição de outrem, segundo Mia Couto. Daqui a pouco estarei perdida nos labirintos de Clarice, de Calvino, de Garcia Márquez, ainda que varra a casa, que lave a louça, que dobre a roupa, que prepare café... Não é possível me encontrar em outro lugar. Sinto muito se você precisa de mim para algo, se requer minha presença, se acredita que realmente estou presente quando estou lá. Não me convide, pois não irei. Se eu for, estarei lhe enganando. Meus gatos são testemunhas, pois, no fim das contas, estão sempre comigo, onde quer que eu esteja de alma. De corpo, não garanto a presença dos gatos.

Faz tempo que desisti de investigar quem está doente: eu, que tento criar um mundo aceitável ou quem aceita o mundo real do modo como está. Há anos acredito que estamos todos doentes. Sofremos de dominação crônica. Cada um é dominado por algo alheio ao que desejou quando projetou a vida ideal: pessoas, lembranças, bens materiais... e bem poucos conhecem o carreiro estreito que leva ao fim do mundo da dominação. De todas as coisas que possam vir a dominar alguém, as lembranças são as mais cruéis. O carreiro jamais será estreito e curto até a consciência de que tudo o que passou não existe mais, porque o próprio tempo inexiste. Descrito assim, deste simplório modo, parece tola a teoria. Só Eckhart Tolle poderá explicar sem parecer tolo.

De minha parte, encontrei o carreiro que proscreve as más lembranças. Mas não posso dizer que estou livre de um domínio. Desde o início tenho dito que crio um mundo para poder existir. Sou dominada pela criação, a ponto de dar a algumas línguas adestradas a oportunidade de dizer que literarizo minha vida. Pouco me importa também.  Não reclamo pelo domínio da literatura. Au contraire... Sou apaixonada pelo coronel Aureliano Buendia, e não se passa um dia em minha vida em que eu não lhe dedique um fundo suspiro.  Ando por sua casa em Macondo, assim como percorro carreiros poeirentos e terras sonâmbulas em Moçambique, onde Mia Couto esconde seres estranhos e onde minha noite habita. Vivo apequenada pela tristeza das vidas de Saramago e engrandecida por transformar meu namorado em príncipe todas as vezes em que o beijo. Não posso explicar isto de um modo engenhoso: minha vida e a literatura são a mesma coisa. 

Estão aí os poetas explodindo o peito a céu aberto em pleno dia da poesia, experimentando chapéus anacrônicos de escritores do passado, chamando Pessoa para uma mesa de bar, enfiando um punhal de gelo no peito de Maiakovski, berrando que existem... Não condeno ninguém. Estou berrando também. No fundo, ou nem tão ao fundo, são todos tão enredados nas teias invencíveis da literatura quanto eu... Sofrem da mesma desordem. Quem vai saber?

*Anayde Beiriz