quinta-feira, 28 de maio de 2020

Pássaros para Leminski

          A lembrança é remota, como de algo que se vive em sonho, envolto em névoa. Eu atravessava o Largo da Ordem numa tarde em que os canteiros da Praça do Relógio explodiam em flores de primavera em pleno verão de Curitiba. Foi então que o anjo, que andava calado ao meu lado, disse-me ao ouvido: Olha o Poeta! Eu olhei, e vi que daquela vez não era uma promessa vã do anjo que costumava caminhar com a mão entrelaçada à minha sob as árvores, e que naquela tarde particular dissera que em breve poderia me levar à presença das estrelas. 
          O Poeta estava ali, ao alcance de minha crença pueril de que a poesia podia ser vista a olho nu. Era Leminski. Com a elegância de "um homem com uma dor", ganhava o tempo de toda uma tarde comovendo-se com os pequenos pássaros feitos de papel branco que os colegiais brincavam de libertar sobre os gramados. Estava ali, recolhendo versos que nasciam com a mesma delicadeza daqueles pássaros efêmeros que voejavam como se fossem perenes entre os jardins da Praça e a juventude dos colegiais. E parecendo nos "olhar de dentro de um diamante", sorriu ao nos ver passar como passavam os pássaros de papel impelidos pelo vento, ou porque tivéssemos nos olhos o encantamento de quem testemunhasse uma aparição divina. Leminski..., sussurrei de volta para o anjo, naquele instante que se imprimiria na memória como uma das mais belas pérolas do nosso relicário. Depois apenas o vimos ir embora, telúrico e quase marginal, caminhando "assim de lado", levado pelo crepúsculo, com um pássaro de papel colhido na concha da mão. 

Crônica publicada no livro Pérolas ao Sol, Escrituras Editora - 2017.

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