domingo, 17 de março de 2019

Minha cidade é minha?


Minha cidade não é minha cidade. Nasci tão longe que nem se pode calcular a distância de minha cidade até minha cidade. Minha cidade hoje é a que escolhi para viver, e não a que meu viu partindo a casca do ovo, partindo pinhões com os dentes de leite, partindo os porta-retratos do primeiro amor, partindo para sempre para minha cidade derradeira. Esta que agora me vê de coração partido. Minha cidade – se é que o leitor entende que me refiro a cidade Agora – tem tudo o que há nas outras. Tem ruas, que são largas porque havia território suficiente para criar vias generosas, mas por elas, andamos chacoalhando como se andássemos em carroças puxadas por bois, embora tenhamos carros de luxo. Nossos carros, de luxo ou populares, andam velozes por debaixo dos postes sem luz, driblam crateras que se abrem a cada inverno sobre o asfalto eternamente remendado, atropelando gatos distraídos, mutilando filhotes de cachorros que são jogados nas ruas, porque em casa quase ninguém os quer, e não há serviço público que também os queira.

Minha cidade se orgulha de seu endereço: esquina do rio Amazonas com a linha do Equador. Mas o rio Amazonas tem águas tão vigorosas que trazem vacas mortas para a praia, trazem geladeiras descartadas pelo morador das ilhas, trazem panelas velhas, destroços de pneus, de ventiladores, de camas tubulares... Tenho orgulho desse rio, que cumpre com lealdade seu destino de vazar e encher, vazar e encher, todos os dias, há milênios. Mas tenho vergonha de que as quinquilharias sejam levadas de volta pela maré, porque não há quem as recolha. Por certo, quem tem o dever de recolhê-las pensa que os peixes cumprirão a sábia responsabilidade de comer tudo. Desconfio que o rio, sufocado de mágoa, tenha começado a devorar minha cidade. Quem anda, como eu, perscrutando paisagens por todo canto, já deve ter visto os pedaços que ele comeu, engolindo calçadas, arrimos e árvores nos bairros periféricos onde antes ele acolhia os banhistas alegres e bêbados do domingo.

Minha cidade tem um imenso forte que a protege de possíveis invasores, com direito a masmorras e canhões. É o maior e um dos mais belos do Brasil, e ao seu redor, passeiam hordas de visitantes que vão espalhando cargas de copos e garrafas descartáveis de toda cor, pacotes de comida barata vendida pelos ambulantes, latas de refrigerante e cerveja, destroços do piquenique sobre o mato crescido onde deveria haver um gramado verdejante, onde deveria haver, no mínimo, latas de lixo e bancos para descanso e contemplação da paisagem. 

Minha cidade não tem tantas lixeiras públicas quanto poderia. Quando elas se abarrotam, há sempre os que não se envergonham de lançar ao chão os resíduos de tudo aquilo que consomem. E o urubus fazem festa, das oito da manhã até às cinco da tarde, em pleno centro da minha cidade, em pleno parque construído sob a promessa de encantar turistas.

Pelos parques maltratados caminham franceses, alemães, italianos, todos de rosto ardido pelo nosso sol equatorial, com mochilas tão grandes que parecem transportar crocodilos. Mas todos têm nos olhos a mesma desilusão. Afinal, a propaganda era clara: a única capital brasileira banhada pelo maior rio do mundo, área de livre comércio, paisagem amazônica intocada e cultura efervescente. Cést la vie, meus amigos estrangeiros. Faz muito tempo que o abandono ronda o trapiche, o centro de cultura negra, o teatro, os museus, a biblioteca, as praças, as ruas, os monumentos históricos...

Hoje passeei por uma rua distante e descobri que há um circo instalado em minha cidade. Um pequeno e nostálgico circo que me proporcionou a cândida esperança de um recomeço.  Eu não teria medo de derrubar tudo e começar tudo de novo. Ou voltar para a pequena e distante cidade onde nasci, que de qualquer modo, sempre será minha cidade também.

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