domingo, 17 de março de 2019

Eu literarizo, tu literarizas...




Sem meias palavras: eu não quero nem saber do dia da poesia, do dia do poeta, do escritor, do dia do raio que o parta. Dia disso ou daquilo nada me dizem. Eu vivo a literatura com tudo o que ela arrasta consigo: poesia e prosa carregadas de amor, de sangue, de guerras, de magia, de tesão, de feitiços, de realidade, de ilusão, de invenção... e vivo de um modo que já não posso dizer que da literatura minha vida possa vir a ser dissociável. São e sempre serão uma coisa só. “Escrevo para poder criar um mundo no qual eu possa viver”* e leio para ter a possibilidade de viver em outros mundos já criados. Portanto, não me perguntem onde estou ou porque sumi. Estou aí em algum livro.  Ou escrevendo qualquer coisa que nem sempre se aproveita. Ainda agora, antes de principiar este modesto escrito, estava a assistir ao último voo de um flamingo, debruçada no derradeiro barranco de um país engolido pela ambição de outrem, segundo Mia Couto. Daqui a pouco estarei perdida nos labirintos de Clarice, de Calvino, de Garcia Márquez, ainda que varra a casa, que lave a louça, que dobre a roupa, que prepare café... Não é possível me encontrar em outro lugar. Sinto muito se você precisa de mim para algo, se requer minha presença, se acredita que realmente estou presente quando estou lá. Não me convide, pois não irei. Se eu for, estarei lhe enganando. Meus gatos são testemunhas, pois, no fim das contas, estão sempre comigo, onde quer que eu esteja de alma. De corpo, não garanto a presença dos gatos.

Faz tempo que desisti de investigar quem está doente: eu, que tento criar um mundo aceitável ou quem aceita o mundo real do modo como está. Há anos acredito que estamos todos doentes. Sofremos de dominação crônica. Cada um é dominado por algo alheio ao que desejou quando projetou a vida ideal: pessoas, lembranças, bens materiais... e bem poucos conhecem o carreiro estreito que leva ao fim do mundo da dominação. De todas as coisas que possam vir a dominar alguém, as lembranças são as mais cruéis. O carreiro jamais será estreito e curto até a consciência de que tudo o que passou não existe mais, porque o próprio tempo inexiste. Descrito assim, deste simplório modo, parece tola a teoria. Só Eckhart Tolle poderá explicar sem parecer tolo.

De minha parte, encontrei o carreiro que proscreve as más lembranças. Mas não posso dizer que estou livre de um domínio. Desde o início tenho dito que crio um mundo para poder existir. Sou dominada pela criação, a ponto de dar a algumas línguas adestradas a oportunidade de dizer que literarizo minha vida. Pouco me importa também.  Não reclamo pelo domínio da literatura. Au contraire... Sou apaixonada pelo coronel Aureliano Buendia, e não se passa um dia em minha vida em que eu não lhe dedique um fundo suspiro.  Ando por sua casa em Macondo, assim como percorro carreiros poeirentos e terras sonâmbulas em Moçambique, onde Mia Couto esconde seres estranhos e onde minha noite habita. Vivo apequenada pela tristeza das vidas de Saramago e engrandecida por transformar meu namorado em príncipe todas as vezes em que o beijo. Não posso explicar isto de um modo engenhoso: minha vida e a literatura são a mesma coisa. 

Estão aí os poetas explodindo o peito a céu aberto em pleno dia da poesia, experimentando chapéus anacrônicos de escritores do passado, chamando Pessoa para uma mesa de bar, enfiando um punhal de gelo no peito de Maiakovski, berrando que existem... Não condeno ninguém. Estou berrando também. No fundo, ou nem tão ao fundo, são todos tão enredados nas teias invencíveis da literatura quanto eu... Sofrem da mesma desordem. Quem vai saber?

*Anayde Beiriz

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